18 de abril de 2008

Venha me falar de amor


Os acontecimentos a seguir se passam em uma penitenciária:

O silêncio faz parte de mim. Não falar, não discutir e somente ouvir é um preceito do sábio. Assim, um dia após o outro, entre muralhas e aço, pedras e estilhaços, vejo a vida que padece no homem do mundo. Nas noites de negra escuridão e dias de claras hostilizações, viajo nas nuvens escuras em cúmulos que me amedrontam. A noite descansa enquanto nada tenho a fazer senão pensar e enganar a mim mesmo com o propósito de que tudo está bem. Arde o meu cérebro, queimam as minhas artérias e os meus pulmões se esfolam, os pensamentos arquejantes da angústia. Olho aqui e ali. De um lado a outro me restam nada mais nada menos do que 200 centímetros quadrados para respirar e viver. 19h. A luz se apaga. Eu continuo a viagem no nimbus e só me dou conta da pedra fria quando a dor na coluna vertebral já está parecendo um câncer, tão absorto estou em meus castelos de névoa. Refletir é necessário! Regenerar é minha oração. Suplico a Deus e busco o fundo da razão, imploro o seu perdão e durmo para amanhecer entre feras enjauladas em comiseração e ferro, deleites frustrados, homens doentes, mentes embotadas de delírios funestos da ignóbil tentadora. Filhos de Deus talvez, mas trazendo o gene da maldição, o DNA de Satã, embutido em seus sacos de miséria. E o dia amanhece, turbado, obscuro:


- Não sei onde, mas... Aqui dentro? Vocês ouviram?
- Hã? O quê?
- Ouçam!
- O quê?
- Ouçam!
- Cães que ladram, tacapes batendo no chão... Lá em cima... Ouviram?
- É... É...
- Quieto pequeno, não precisa amarelar... São eles... São eles...
- Quem?
- Os hómi, meu! GERAL!
- GERAL? GERAL?
- É! Geral! Todo mundo pelado!
- Meu Deus! Meu Deus!
- Fique quieto Joramil, cacete! Pode aprontar o rabo!
- Será que é mesmo?
- Não. Fica aí dormindo com o rabo pro ar e não fica esperto não!
- Otário! Furão cabuloso! Mané, o ferro entra e você não sente.
O estrondo agora é de arrebentar. Parece uma tropa em combate, mas é o batalhão de choque, mais uma vez, para infernizar a nossa vida. Porra! Cacete! Caralho! Esses diabos outra vez? Meu Deus! Que inferno! Martírio dos diabos:
- Depressa LADRÃO! Vai VAGABUNDO! PELADO! Mão na cabeça seu PÔRRA! Vai CÁRAI!

Que cara analfa esse soldado! Não aprendeu nem falar direito o palavrão, o que se passa na cabeça de uma cria dessas? E lá vou eu, peladão de saco e bunda correndo e vendo o balanço das velas das Naus de Cabral do artesanato, amolecido de medo. Pudera, malandro! Quer ver? Experimenta! Só um pouquinho. Venha ficar de quatro pra você ver o que é que o sargento pode fazer com tu. Sem misturar as coisas, entenda; isto aqui é assunto pra diabo nenhum gostar. Depois de meia hora de barriga no chão, pintainho beliscando cimento e a canaleta do açude, como galinha do sambiquira sem pena (não é mole não, cara!), me chamam pelo nome e eu tenho que sair correndo outra vez e eles acelerando este celerado, com tapas nos lombos e gritos de índios na guerra me fazendo enlouquecer de amor por este lugar, até chegar no pequeno cubículo bagunçado. Duas horas para afrouxar os nervos e mais duas horas para arrumar tudo. Meus livros estavam no boi, minhas calças na outra jega, eu não podia abaixar pra não mostrar minhas pregas aos meus colegas. Toda essa parafernália causava ódio e desejo de vingança. Haviam espatifado tudo numa verdadeira anarquia. Agora é só raiva, ódio mesmo. O que estes caras pensam? Eles vieram para cumprir um dever de inspecionar os recintos em que as mães deles deveriam estar com a gente, ou vieram para dar pauladas, pancadas nos reeducandos e reeducar com hostilidade? É de se pensar que nos quartéis das tão brilhantes sociedades encapuzadas estão adornando esses homens com requinte de Nero, Heródes ou Pilatos, mas não posso falar nisso porque apesar de ser um Cristo expiatório da turba de criminosos impunes pela imunidade parlamentar – para não falar em máfia – tenho só alguns anos para viver e quero viver fora dessa. Eu queria mesmo é me regenerar, mas eles não querem isso. Eles querem os eu-idiotas, mentecaptos da fábrica para ficar na engenhoca deles, fazendo girar a guirlanda de flores que perfuma vossos nomes e dão aroma às suas profissões – Malditos! Mas... Acho que tudo isso foi taramelagem do Ilsson. Vou ficar de olho neste cara e não vou à aula dele nem que ele me traga a xana mais cheirosa e mais gostosa da Citylon ou da Drinacity, mostrando alguma coisa que me chame a atenção, ou venha me falar de amor.
A.S., 2004.

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